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Tendências de Verão para o AL e Hotelaria

Artigo de opinião de Bruno Magalhães na revista Vida Judiciária

16 de Setembro de 2024

O artigo de opinião de Bruno Magalhães na revista Vida Judiciária

Quando o desígnio industrial e europeísta de um país à beira-mar plantado desagua inevitavelmente na venda de dormidas, sunsets e de pasteis de bacalhau (soft and salty codfish cake) com queijo da serra – ou turismo em abundância – é imperial ficarmos a par das tendências legislativas de Verão sobre a matéria. Ainda que a temperatura média do oceano não ronde muito acima dos 19.ºC, pelo menos na região centro, onde costumo ir a banhos, temos silly season, novidades no alojamento local, turistas em regime full season, e outros conexos.

Em contexto de consolidação infértil do famigerado “Mais Habitação” (o “Pacote”), importa assinalar, em primeiro lugar, a recuperação robusta do sector do turismo após a pandemia e que, em 2023, a hotelaria portuguesa registou 68,5 milhões de dormidas até Setembro, um aumento significativo comparado aos anos anteriores (in Google).

Destacamos, também, que segundo dados do INE, até 2023, existiam cerca de 103.000 unidades de alojamento local e 5000 estabelecimentos de hotelaria registados em Portugal.

O Pacote apontou baterias ao problema da habitação com a mira – errada, dizem alguns especialistas, e tendo a concordar – na penalização da procura, ou na sua limitação (fim dos vistos gold imobiliários e RNH e estrangulamento do alojamento local), ficando aquém no desenho de medidas estruturais adequadas à redução substancial dos custos de construção (foco no aumento da oferta), incentivando a construção de habitação nova em queda nos últimos 30 anos.

O Jornal Económico assinalou recentemente que o número de edifícios licenciados para construção de habitação nova, no segmento de habitação familiar, registou uma quebra de 15,6% no primeiro trimestre de 2024, em comparação com o período homólogo do ano anterior. 

Assumindo que a redução de licenciamentos não reside, ironicamente, no facto de várias operações se verificarem agora isentas de licenciamento, constatamos que o SIMPLEX, em vigor desde Janeiro (ainda que a várias velocidades) no imediato, falhou num dos seus principais desígnios. Primeiramente, em virtude de factores conjunturais – incerteza política do que aí vinha, com eleições antecipadas em Março passado – mas também, estou em crer, e sujeito a confirmação com dados do segundo trimestre, por incertezas jurídicas decorrentes do próprio diploma. Aguardemos.

Depois do Pacote, não necessariamente a bonança, mas “Construir Portugal”. Um conjunto de 30 medidas anunciadas pelo novo Governo no decurso do mês de Maio, algumas especialmente focadas na alteração/rectificação das medidas PS, entre elas, e com particular relevância para o nosso tema de Verão, a proposta de revogação da Contribuição Extraordinária sobre o Alojamento Local (CEAL), da caducidade das licenças, e de delegação da regulação AL para os municípios.

Em termos práticos, para já, caiu a medida bicho papão do Pacote – o arrendamento forçado, mais mediática do que propriamente relevante – pela revogação do artigo 108.º-C do RJUE (artigo 1.º, alínea b), do Decreto-Lei 43/2024, de 2 de Julho) e o Governo passa a contar com uma autorização legislativa de 180 dias para, com efeitos retroactivos a 31 de Dezembro do ano passado, assegurar que nenhum proprietário de AL venha a pagar a CEAL.

A autorização legislativa inclui, ainda, poderes para revogar o coeficiente de vetustez aplicável aos estabelecimentos AL para efeitos da liquidação do IMI, nada se contemplando, porém, relativamente à caducidade das licenças ou à emissão de novos registos AL na modalidade de apartamentos e estabelecimentos de hospedagem integrados em fracção autónoma que, por via do artigo 19.º do Pacote, se encontra suspensa em todo o território nacional (com excepção dos territórios do interior definidos por Portaria e Regiões Autónomas).

Voltando brevemente ao arrendamento forçado, a crítica feroz sempre me pareceu exagerada(mente populista). Não é necessário advogar uma esquerda radical para acreditarmos no fim social da habitação, sendo até fácil reconhecer que, no nosso Estado de Direito Democrático, só o clima temperado mediterrâneo e a gastronomia ímpar são absolutos (pasteis de bacalhau com queijo fora da equação, naturalmente).

Os direitos, de propriedade e outros, relativizam-se na dinâmica do contrato social, e harmonizam-se, ou reduzem-se no seu sentido e alcance em função dos demais. Mas acima de tudo, à margem da discussão politico-filosófica, o arrendamento forçado, não sendo sequer inédito (vide art.º 108.º-B do RJUE), sempre seria uma medida de aplicação tão residual que a epígrafe do defunto 108.º-C do RJUE bem poderia ser o “arrendamento fantasma de habitações devolutas”.

Timidamente, rezava a Lei (o Decreto, em bom rigor) que, sempre que tal fosse necessário para garantir a função social da habitação, o município podia, excepcional e supletivamente, proceder ao arrendamento forçado. Ora, com suporte na interpretação sistemática e teleológica do Pacote, o mesmo é dizer que enquanto houvesse uma propriedade devoluta do Estado susceptível de ser integrada num programa de arrendamento acessível, nenhuma propriedade particular poderia ser arrendada forçadamente. Ou de outro modo, na lógica supletiva da medida, apenas após todo o edificado devoluto do Estado se verificar afecto a programas de arrendamento acessível, sem que, ainda assim, se verificasse garantida a função social da habitação, poderiam os municípios avançar com medidas de arrendamento forçado. Digo eu, que nem sendo de Direito Público, já vislumbrava massa crítica atrevida para a impugnação do acto administrativo. Mas são águas passadas, a bem da sã convivência entre o fim social da habitação e o direito de propriedade.

Não havendo, no imediato, especiais novidades do Governo para o sector da hotelaria (para além do novo aeroporto e da ferrovia) espaço sempre sobeja para digerirmos criticamente aspectos relevantes de articulação do SIMPLEX de Janeiro com o regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos (RJIEFET).

As operações urbanísticas associadas aos empreendimentos turísticos seguem o regime do RJUE, conforme alterado pelo SIMPLEX, ainda que com especificidades próprias, logo surgindo dúvidas de interpretação, não quanto ao omisso do RJIEFET, mas sobre matérias que ali vêm especificamente reguladas.

Destacamos, no leque de alterações significativas ao RJUE, o PIP favorável como expediente de dispensa do licenciamento de operações urbanísticas, verificados determinados requisitos; o fim da opção pelo licenciamento relativamente a operações sujeitas a mera comunicação prévia e; a eliminação da autorização de utilização.

Sendo certo que o SIMPLEX pretende abranger a simplificação, também, das operações urbanísticas para o desenvolvimento turístico, notamos que o RJIEFET mantém a exigência de comunicação prévia com prazo para a edificação de empreendimentos (artigo 23.º e 23.º-A do RJIEFET), levantando dúvidas sobre a aplicabilidade do “PIP detalhado” favorável.

O RJIEFET também mantém a possibilidade de opção pelo licenciamento para opções sujeitas a comunicação prévia, factor essencial para a definição da estratégia de investimento e para a avaliação dos riscos de desenvolvimento de projecto, e o alvará de utilização continua a ser o título determinante de abertura de um empreendimento turístico.

Surge necessária e muito conveniente, na óptica dos operadores do sector e até dos próprios municípios, uma clarificação do enquadramento aplicável, a bem do processo de diálogo indispensável na condução do procedimento urbanístico, da almejada uniformização de procedimentos urbanísticos, de norte a sul do país, e para que todos os intervenientes usem o mesmo dicionário.

Um tema relativamente ao qual esperamos desenvolvimentos, muito provavelmente já só depois da silly season.

O Diabo está nos detalhes.