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Quem tem medo da Justiça?

A defesa do Estado de Direito Democrático e o respeito pela autonomia do Ministério Público devem ser compatibilizados com o modelo de subordinação hierárquica previsto na Constituição e com o escrutínio necessário, no quadro das regras democráticas

6 de Fevereiro de 2024

Texto de Opinião de Paulo Valério publicado originalmente no jornal Expresso, a 5 de fevereiro de 2024.

Num clima de indisfarçável tensão entre a política e a justiça, com a extrema-direita a carregar nas tintas e à beira de eleições, a encruzilhada é evidente. Devem os partidos com afeição ao Estado de Direito Democrático tomar as rédeas da política de justiça ou, pelo contrário, paralisar de medo, como sugeria, há dias, Luís Marques Mendes? Vou pela primeira hipótese.

A política não pode fugir à justiça (que não se esgota na justiça penal), sob pena de abdicar das suas próprias responsabilidades: preservar o Estado de Direito Democrático; garantir tutela jurisdicional para os direitos dos cidadãos constituídos pelo parlamento e pelo governo; reforçar a dimensão de justiça económica, essencial ao desenvolvimento do país; e ainda, no campo da esquerda democrática, ter pensamento próprio nas áreas de soberania, evitando o monopólio da direita, especialmente da extrema-direita, neste domínio – segurança, com liberdade; defesa, no quadro dos nossos compromissos internacionais; justiça, com garantias. A política tem horror ao vazio e este é o terreno que, deixado livre, será ocupado pelo populismo, pelo extremismo, diria, pela barbárie.

Por outro lado, e numa abordagem pragmática, está visto que a repetição à outrance do mantra “à política o que é da política; à justiça o que é da justiça”, já não defende ninguém, como os acontecimentos recentes bem demonstram.

Atuar na justiça é atacar a separação de poderes? Claro que não. Se é aos tribunais – e só a eles – que cabe julgar; se é ao Ministério Público que cumpre investigar; só a política tem legitimidade democrática para, em nome do povo, estabelecer o quadro normativo de atuação dos tribunais, seja no plano interno, seja no plano externo. Os políticos não julgam e não investigam. Os tribunais não legislam. Simples, assim.

Mas a tarefa não é fácil.

A celeridade das decisões deve estar subordinada à qualidade e ao respeito pelos direitos dos diversos intervenientes processuais. A estabilidade e clareza das leis não pode ignorar a dinâmica e complexidade das relações económicas e sociais. A justiça deve saber comunicar com os cidadãos em momento, forma e conteúdo adequados, mas sem ceder à simplificação ou à tabloidização. A capacitação institucional faz-se sem prejuízo da separação de poderes e do espaço de autonomia dos diferentes atores judiciários.

Por outro lado, a transição digital não deve servir para lavar a cara da justiça através de apps e portais, mas esquecer, no osso do problema, a organização, a fixação de objetivos, a medição de resultados, enfim, a gestão diária de equipas e processos, para prestar bons serviços, céleres, transparentes, acessíveis, aos cidadãos.

Deve a política alhear-se do modelo de acesso ao direito e aos tribunais pelos mais carenciados? Não. Deve avaliar o sistema e apresentar alternativas, para que os interesses corporativos não prevaleçam sobre os direitos dos cidadãos.

Deve a política ignorar a conflitualidade latente nas diversas profissões jurídicas? Não. Deve trabalhar com todos e garantir que todos – juízes, procuradores, advogados, solicitadores, funcionários judiciais – encontram um terreno comum de construção de soluções para os problemas da justiça.

Deve a política ignorar o entupimento dos tribunais administrativos e fiscais? Não. Para além de medidas gestionárias, deve interrogar-se sobre o crónico insucesso do Estado quando pleiteia com os particulares. Se o fizer, talvez perceba que o problema se resolve a montante, garantindo que a administração (com destaque para a administração tributária), atua de modo qualificado, com respeito pelo princípio da legalidade e alinhada com a jurisprudência dominante.

Deve a política resignar-se a que os muros da prisão sejam sepulcros caiados? Não. Deve lutar por uma maior humanização do sistema, para melhor reintegrar, reabilitar e ressocializar os cidadãos reclusos.

Deve a política deixar que as suspeitas sobre si própria sejam já uma algema, impedindo-a de tratar, por exemplo, as violações sistemáticas do segredo de justiça? Não. A defesa do Estado de Direito Democrático e o respeito pela autonomia do Ministério Público devem ser compatibilizados com o modelo de subordinação hierárquica previsto na Constituição e com o escrutínio necessário, no quadro das regras democráticas.

Pode ser isto, E outras coisas. Em alternativa, pode ser como suspeita o Dr. Marques Mendes.

O Diabo está nos detalhes.