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O paradigma do gestor criterioso e ordenado

Artigo de opinião de Bruno Magalhães publicado na revista Vida Judiciária

8 de Março de 2024

Artigo de opinião de Bruno Magalhães publicado na revista Vida Judiciária em março de 2024.

O paradigma do gestor criterioso e ordenado

Num contexto de intensa actividade legiferante e regulatória, em diversos domínios que impactam directamente o desenvolvimento da actividade empresarial, vimos assistindo a uma densificação profunda, por vezes complexa, daquilo que se pretende sejam as boas práticas de governança corporativa, abarcando, de forma derivada, os procedimentos internos de compliance.

O quadro legal e regulamentar com vista à criação de mais e melhores condições de transparência da actividade empresarial e do comércio juridico, em benefício dos consumidores e em prol de interesses públicos superiores – com reflexos no regime da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (BCFT),  da prevenção da corrupção, e nos desafios decorrentes do desenvolvimento da inteligência artificial, entre outros – vem ampliando substancialmente o leque tradicional dos deveres dos órgãos de gestão das empresas e, consequentemente, o âmbito das situações de risco geradoras de responsabilidade, quer da sociedade, quer dos seus administradores.

Os deveres impostos aos administradores desenvolvem-se, numa primeira linha, na relação interna com a sociedade, assinalando-se, neste particular, a assunção do risco social/empresarial em planos distintos, o dos sócios/accionistas, susceptíveis ao risco de capital, e o do órgão de gestão, susceptível ao risco de administração e às regras de responsabilidade civil de vocação indemnizatória por gestão ilícita e culposa.

Densificando o dever geral de administrar e representar a sociedade, os membros do órgão de gestão estão adstritos, desde logo, ao cumprimento de deveres fundamentais de cuidado e de lealdade, conforme decorre, também genericamente, do artigo 64.º do Código das Sociedades (CSC), remetendo-nos para a bitola do gestor criterioso e ordenado enquanto factor de aferição do grau culpa e ilicitude.

O disposto no artigo 64.º do CSC configura uma norma de enquadramento aberto, a fazer operar, ou concretizar, com recurso a outras disposições legais. Reportamo-nos, desta feita, a deveres específicos, contratuais ou legais e, neste último caso, decorrentes do CSC, mas não só, como seja o dever de não celebrar actos e negócios que desrespeitem o intuito lucrativo da sociedade (art.º 6.º do CSC), o dever de requerer a declaração de insolvência da sociedade (art.ºs 18.º e 19.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), ou o dever de convocar ou requerer a convocação de assembleia geral em caso de perda de metade do capital social (art.º 35.º do CSC), entre tantos outros.

No âmbito da relação interna com a sociedade, o administrador é assim responsável pelos danos que lhe causar, conforme decorrerem de actos ou omissões praticados com preterição dos respectivos deveres legais ou contratuais (art.º 72.º do CSC), sendo o juízo de culpa temperado por critérios de racionalidade empresarial e pelo grau de informação verificados na tomada de uma dada decisão de gestão, enquanto expressão da business judgement rule.

Na sua relação externa com outros sujeitos (credores, Estado, sócios, trabalhadores ou outros), identificam-se variadíssimas situações de risco potencial para o administrador menos ordenado. 

Nos termos do artigo 78.º do CSC, os administradores respondem perante os credores quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à sua protecção, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos seus créditos, matéria intrinsecamente conexa com o direito insolvencial, particularmente com o incidente de qualificação da insolvência como culposa e com a obrigação de indemnizar (imputada ao administrador, de facto ou de direito) prevista no artigo 189.º, n.º 1, alínea e), do CIRE. 

Face à legislação especial que compreende o CIRE, a responsabilização do administrador nos termos do art.º 78.º do CSC sempre será residual, e terá aplicação fora do cenário da insolvência, ou quando no processo da insolvência não seja possível, pelos requisitos técnicos da qualificação, declará-la como culposa.

Nas relações externas, e sujeito à verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil, os administradores respondem também para com os sócios e terceiros pelos danos que lhes causarem no exercício das suas funções (art.º 78.º do CSC).

Noutros domínios do Direito, identificamos o instituto da reversão fiscal como um importantíssimo factor de risco, tradicional e amplamente conhecido. Sujeito à verificação dos pressupostos legais estabelecidos para o efeito – (i) exercício da administração de facto; (ii) fundada insuficiência patrimonial da empresa e; (iii) aferição de culpa imputável ao administrador) – os membros dos órgãos de gestão responderão, subsidiária e pessoalmente, pelos encargos fiscais da sociedade (artigos 22.º a 23.º da Lei Geral Tributária e artigos 153.º e160.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Com melhor actualidade, no âmbito do regime BCFT, foram disseminados amplos deveres/obrigações (dever de identificação e diligência, de recusa, de conservação, de exame, de colaboração, de não divulgação, de formação…) a que se verificam adstritas as denominadas entidades obrigadas e, desta feita, os respectivos administradores, responsáveis, em última linha, pela sua observância e implementação. A exigência e complexidade do quadro normativo são de tal ordem que suscitam e compreendem, inclusivamente, a implementação de procedimentos internos adequados à estrutura das entidades obrigadas, visando assegurar as necessárias condições de cumprimento/compliance.

O administrador da entidade obrigada é, pois, responsável pela aplicação das políticas e dos procedimentos e controlos em matéria de prevenção do CBFT (art.º 13.º), devendo promover a aprovação dos mesmos, assegurar que a estrutura organizacional da entidade obrigada permite, a todo o tempo, a adequada execução dessas políticas, nomear o responsável pelo cumprimento normativo, etc.

Neste contexto, tanto o CBFT, como o Regime Geral da Prevenção da Corrupção (RGPC), compreendem regimes sancionatórios próprios, e para efeitos dos quais a responsabilidade das pessoas colectivas pela prática de uma contraordenação não exclui a responsabilidade individual, precisamente, dos titulares do órgão de gestão, ou de outras pessoas singulares, como o próprio responsável pelo cumprimento normativo(!) designado pela gestão (artigo 21.º RGPC e artigo 163.º CBFT). 

É precisamente a densificação recente destes deveres (legais) do administrador, nos diversos ramos do direito ou em sectores de actividade específicos, que vem elevando a fasquia do gestor criterioso e ordenado, em termos que reclamam uma cada vez maior profissionalização da actividade de gestão e, obrigatoriamente, a adopção de procedimentos e mecanismos internos, o denominado compliance, com vista a obstar à responsabilização da empresa e daqueles que a representam, ou a mitigar responsabilidades potenciais, mais ou menos intensos ou sofisticados consoante os circunstancialismos inerentes à própria empresa (dimensão e volume de negócio, sector de actividade, etc.)

O Diabo está nos detalhes.